Em casa, atolado por uma série de atrasados, com a cabeça demasiado concentrada nos prazos desobedecidos da universidade, vejo-me de súbito atravessado por uma notícia severa – navalha no tempo que me leva a um passado recente – minha participação nas lutas contra o aumento das tarifas do transporte público
Corri para o rádio, sintonizei alguma destas “que prestam serviço à comunidade” (como costumam repetir os jornalistas), e fiquei à espera de alguma notícia. Esperei, tendo que ouvir impaciente algumas declarações dos protagonistas da cena política paraibana sobre a “restruturação” do governo, dos cargos, como também, sobre as próximas eleições – A pergunta incessantemente repetida (talvez para dar um ar de importância a este fato, que em última análise, já que nada muda de fato, é banalíssimo), era: Quem será candidato?
Depois de muito esperar, já cansado de asneiras, ouvi no final do programa de notícias, uma passagem rápida, apagada, sobre o incidente que me desconcentrara dos estudos, mais ou menos assim: “Estudantes secundaristas (esqueceram eles de falar que também universitários), ocuparam as ruas de Campina Grande para protestar contra o aumento das tarifas do transporte público. A manifestação foi conduzida até o terminal de integração onde houve confronto com a polícia.
Bem, se me lembro com clareza (e se meu corpo ainda não esqueceu a dor da porrada do cacetete, resultado de uma das manifestações de que participei), a mídia tem destes eufemismos. Quando diz confronto quer dizer: promoção da ordem na base da violência do estado – em detrimento do direito de livre manifestação. Não falaram sequer que oito manifestantes foram levados presos (alguns, que conheço, bem jovens, dezoito, dezenove anos), sob que alegação? Desordem? Desacato à autoridade? Bradar contra o direito legítimo da justiça em decretar um aumento de preços? Discordar do aparente consenso produzido pela força arbitrária daqueles que não só detêm os meios materiais de produção da nossa vida, como também os meios de contenção da liberdade de pensar, de agir, de manifestar-se? Não pode existir confronto, não no sentido pleno da palavra, entre policiais - treinados para a violência, truculentos, e bem instrumentalizados com cacetetes, spray de pimenta, bala de borracha, capacetes, escudos, e todos estes aparatos “robocopizantes” de seu “hábito” (1) - e estudantes armados do pé a cabeça com coragem, consciência, caderno e caneta.
Eu em casa até me sinto um tanto triste, afinal, impedido pela obrigação de estudar, não estive presente nesse suposto confronto. Digo, contudo, aos que se vestem da violência física e simbólica para produzir "verdades", que as nossas verdades (as dos que discordam que o aumento de tarifas é justificável) são produzidas em palavras e atos, sementes de flores vermelhas, que uma vez jogadas ao vento, teimam em brotar no asfalto. A força policial, a justiça e o estado, a mídia – braços de quem tem o poder de ordená-los ( vale dizer, os grandes empresários), podem avançar sobre os nossos corpos, podem até matar-nos, e matam quando julgam necessário, vale o exemplo de El Dorado do Carajás (2). Podem avançar sobre as nossas mentes, conquistando através de um estímulo ao medo, os terrenos de liberdade que ainda nos restam, mas não poderão controlá-las por completo (se até Winston resistiu como pôde ao poder do Big Brother (3))
No fundo da consciência e do corpo, há uma luz que Pablo Neruda recomenda pescar com paciência. Esta luz, oriunda das contradições de um consenso imposto, é energia de luta contra os desmandos que nos ferem o corpo e a alma e quiçá se fará luz mais forte e compartilhada, como a dos “galos tecendo o amanhã” (4).
“Nasceu uma flor no asfalto. É feia mais é realmente uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” (A flor e a náusea – com edição da minha frágil memória - Carlos Drummond de Andrade).
“Não morrerá a flor da palavra. Poderá morrer o rosto oculto daquele que hoje a nomeia, mas a flor da palavra que veio do fundo da história não morrerá” (Sub-comandante Marcos – com a edição capenga da mesma memória – 4ª declaração da Selva Lacandona – Exército Zapatista de Libertação Nacional).
Viva à rebeldia,
atravessado por todos aqueles que lutaram e lutam por dias melhores.
(1) Entenda-se hábito aqui como uma referência às vestes religiosas. Não é só a arma que sinaliza o poder, o “hábito” que os policiais vestem grita o tempo inteiro o seu autoritarismo.
(2) Referência ao assassinato de dezenove trabalhadores rurais sem-terra no estado do Pará em 1996 – trabalho feito pelas mãos do estado, nosso soberano protetor e estado legítimo de direito.
(4) Referência ao poema de João Cabral de Melo Neto.