sexta-feira, 1 de maio de 2009

Mordida na maçã do tempo.

“Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?” (Tom Zé)

“O tempo andou mexendo com a gente sim” (Belchior).


A maçã foi mordida, lembrou-me a moça. Tocou assim, com unha vermelha, a carne aberta e ferida de uma memória amassada. O espírito de passado reavivado é cativo destas coisas ditas, que como pequenas pedras, nos ferem os pés. O incômodo é agudo e o corpo – gruta escura das lembranças – guarda no fundo da água do espírito, o que não foi vomitado de indignação. Não culpo a moça, que assim desdenhosa de meus tormentos morais, simples e espontânea me disse: “Minha relação é mais aberta que a minha janela”. Mas suas palavras - faca no lençol do tempo - deixaram cair assim aos trambolhos um monte de roupas sujas. Vendo aquela bagunça, saída dos porões do meu tempo, e agora escancarada às vistas de quem quisesse espiar intimidades, caí em arapucas da cuca, prendi o pé no visgo da memória: Pode! Não Pode! Você não Pode Poder! Você não Pode! O pudor? Você é despudorado! Ouço isto desde pequeno, ouço quando isto é falado! Ouço quando o que fala é a mudez! Ouço quando quem fala é o padre! Ouço, ouço também minha mãe, em cem bocas ouço a minha mãe, a mesma cantinela e a sandália em riste. As pessoas gostam mesmo de jogar rótulos na cara dos outros. Gostam mesmo! Até gozam com isso! Assim, por prazer, como quem joga no mal palhaço uns tantos quantos tomates, vaias e bolas de papel. Você não é fiel! Você me traiu! Você me ama! Você é um covarde! Você é meu! Você é profano! Você! Você! E as frases reverberam pelos corredores invisíveis de largos significados. O problema não é fazer palavra. O problema é fazer uma cerca na palavra e dizer: Daqui até ali é certo. De lá em diante se erra. A cerca que me implantaram na alma é dura de atravessar. Do outro lado tem jagunços, com os dentes muito firmes e um dedo no gatilho. Tenho medo de bala nos peitos. Tenho um medo revolucionário de dizer, Olha, não nos matemos de enquadramento, dói demais em mim estas retas. Tenho um medo revolucionário de levar estas cercas na raça, de ocupar de pirraça o não-sentido, o errado. Tenho medo, não vou mentir, carrego o tempo nas costas, mas quem sabe? Quem sabe um dia desses o fardo me pesa mais do que o suportável? Aí, ou caio sem forças, tonto e resignado, ou grito e enfrento tiro com coração e palavras.

3 comentários:

Lua Clara disse...

"(...)não nos matemos de enquadramento, dói demais em mim estas retas."
Não dificil entender, mas por que só nós compreendemos, hein?

Lua Clara disse...

"(...)não nos matemos de enquadramento, dói demais em mim estas retas."
Não dificil entender, mas por que só nós compreendemos, hein?

Lunnäe Psï disse...

Dá pra sentir a pressão e as proibições que diariamente nos são direcionada consciente ou inconscientemente, no seu texto...

Os temores são conseqüência disso tudo, somos o resultado do que nos submetemos.