Dostoiévski colocou uma questão intrigante e desafiadora: Se não há imortalidade, tudo é permitido? De que modo censurar em alguém o prazer vicioso e sem limites do presente, em prol de um prazer de um futuro incerto de uma vida virtuosa pautada pela sabedoria?
Balzac, escritor francês do século XIX, escreveu várias obras de uma qualidade elogiável. Uma destas foi o romance A Pele de Onagro, primeira dele que se destacou no meio crítico. É um romance que faz a mistura de elementos realistas e fantásticos. Embora original, tem um enredo que lembra um pouco o Fausto de Goethe, que insatisfeito com os frutos de sua vida intelectual, vendeu a alma ao diabo a fim de obter poder e experimentar um sentido satisfatório na vida.
Raphäel é o protagonista principal. Jovem pobre, de talento intelectual distinto e com uma insaciável vontade de experimentar os prazeres de uma sociedade parisiense aristocrática, cheia de encanto, com suas mulheres coquetes, com seus banquetes e todos outros atrativos de uma vida voltada ao elegante, ao extravagante, ao belo, ao alegre e ao dinheiro. Após desprezar Pauline, moça linda, por ser pobre, apaixona-se por uma mulher coquete e sem coração Fedora. Enfim, desprezado friamente por esta, apesar de todos sacrifícios financeiros, feitos sob a falsa aparência de status e riqueza, o mesmo se lança à vida do jogo onde encontra sua ruína total. Nesta situação deseja morrer.
No dia que decide se matar, encontra um velho que lhe oferece um talismã mágico, uma pele de onagro (uma espécie de jumento do oriente). Nesta havia uma inscrição em sânscrito: "Se me possuíres, possuirás tudo. Mas tua vida me pertencerá. Deus quis assim. Deseja, e teus desejos serão realizados. Mas regula teus desejos por tua vida. Ela está aqui. A cada desejo, decrescerei assim como teus dias. Queres-me? Toma-me. Deus te atenderá. Assim Seja."
Raphäel aceitou possuir o talismã, sem levar muito a sério as consequências do poder destruidor do mesmo. O primeiro desejo foi participar de uma grande festa, cheia de orgias, com convidados ilustres, jovens, alegres e intelectuais, com belas mulheres ardentes e com muita bebida. O que aconteceu. E depois desejou ficar milionário. O que também aconteceu. Tal foi a surpresa dele quando percebeu que a pele de fato estava diminuindo.
É neste ponto que a morte surge no horizonte da existência. Raphäel apercebeu-se de que a cada desejo satisfeito sua vida ia se aproximava do fim, por conta do pacto que fez ao tomar para si o talismã. Interessante é que quando vivia numa situação de pesar, sofrimento, humilhação e pobreza, a vida era-lhe desinteressante. Mas, agora, tendo todo poder para desfrutar da fama e dos prazeres, a vida agora lhe aparecia como algo de alto valor. Temendo a morte, Raphäel tornou-se praticamente um eremita, isolou-se na sua mansão a fim de não se colocar em situações nas quais seus desejos pudessem ser despertados. Mas, não podia evitar o contato social, que aos poucos foi lhe seduzindo.
Durante todo o restante do livro, Balzac mostra a relutância e os cuidados de Raphäel para adiar sua morte, o que era algo inútil. Pois a morte se afigurava como uma realidade inevitável, uma vez que era impossível viver uma vida sem desejos. Porém, surge uma questão para o leitor: Inevitável não é a morte para todos os seres humanos, independente do talismã ou não? Eis uma das condições da existência. Condição esta que torna a existência humana, caracterizada como uma infinda fuga do presente, como uma fuga para o nada. O homem que se orienta sempre a um futuro, vislumbra no horizonte da existência a Morte.
Que vale ter um poder de satisfazer todo desejo se este poder não é suficiente para deter o destino inexorável que é a Morte? Neste contexto de uma existência condicionada à mortalidade, que implica na finitude da vida, na limitação e na restrição de uma vida insaciável de desejos, surge a questão prática de como se portar na vida. Orientar a existência à busca da virtude e da sabedoria ou então ao esgotamento de todas energias na busca por uma satisfação, inconseqüente, de todos os desejos, usufruindo de um prazer instantâneo e vicioso?
Nesta obra Balzac desafia-nos a censurar racionalmente a prostituta, que imprudente, cheia de vícios e extravagâncias interpelada sobre seu futuro responde: "O futuro? ... Que é que chama de futuro? Por que hei de pensar numa coisa que ainda não existe? Nunca olho para trás nem para diante de mim. Já não é bastante ter de me ocupar com o dia inteiro duma vez só? Além disso, o futuro já conhecemos, é o asilo." Preferindo viver uma vida voltada aos prazeres, enquanto durar os encantos da beleza, esta mulher prefere a vida cheia de vícios, ciente de que possivelmente terá uma velhice desconfortável e sem encanto desprezada pelos homens. Raphäel parece incapaz de censurar esta mulher e mesmo intrigado com o comportamento da prostituta, reflete através de uma pergunta retórica com seu amigo que independente do modo de vida "quer vivamos com os sábios ou morramos com os loucos" o resultado é, cedo ou tarde, o mesmo.
Concluindo, Balzac coloca em sua obra, A Pele de Onagro, a questão do significado da existência e o impacto da morte sobre ela, fazendo refletir sobre a fragilidade até mesmo de um poder ilimitado para satisfazer um querer insaciável. E por fim fica a questão: que diferença faz para um ser, que só pode vivenciar um presente fugidio, o estilo de vida vicioso ou virtuoso, sábio ou louco, prudente ou inconseqüente, se a morte até agora tem se mostrado como um destino inevitável?
Johannes Alienus Amens.
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
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Um comentário:
A diferença está na "qualidade'de vida.
Isso não conta muito na juventude.
Mas após aos quarenta,ocorre uma mágica.
O mais importante é sentir tudo e participar...
Para sentir,não dá pra amortecer...
Pra participar,tem que ter equilibrio.
O comedimento,caro desconhecido,não é uma fardo para quem valoriza o que sente!
;)
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